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Vem pro meu mundo: os bailes funk e a geografia política do Rio de Janeiro


“Vem que tá maneiro, vem, vem que tá maneiro / Eu viajei o mundo todo dentro do Rio de Janeiro”. O hit cantado por Mc Flavinho e produzido por FP do Trem Bala em 2019, apresenta um movimento relativamente recente das favelas e comunidades do Rio de Janeiro: a identificação dos bailes funk e seus territórios com países e cidades do mundo inteiro. Na verdade, o fenômeno não é completamente novo. O Baile da Colômbia, original do bairro Lins de Vasconcelos, no subúrbio carioca, já existe com esse nome há duas décadas, em alusão a um tipo de maconha com níveis mais elevados de THC.

Também não é de hoje que territórios onde há a presença de facções são rebatizados com nomes de localidades onde ocorrem guerras e conflitos armados de grandes proporções como, por exemplo, a Faixa de Gaza (na favela de Manguinhos, em Higienópolis). O “tipo colombiano” também já foi mobilizado por Mc Frank, no início dos anos 2000, para caracterizar o modo de atuação de uma das maiores facções da capital fluminense. Havia também “estilo Bagdá”, “Afeganistão”, “estilo Osama Bin Laden”... em clara conexão com os conflitos internacionais em evidência no período, o que denota uma forma de leitura e de produção de conhecimento sobre as relações internacionais muito própria da realidade das favelas cariocas.

O que temos visto nos últimos anos, porém, é diferente: uma verdadeira explosão de bailes-países, tanto na capital quanto na Baixada Fluminense e algumas cidades da Região dos Lagos. Há muitos aspectos interessantes para se observar, mas destaco aqui dois deles: a conexão entre os bailes-países e as “tropas” e a “exportação” desse modelo de organização de festas para outras cidades e estados do Brasil e do mundo.

No Twitter, as “tropas” se subdividem em dois grupos, basicamente. O primeiro é formado por integrantes ou simpatizantes da facção que domina o local de realização do baile - é o caso, por exemplo, da “Tropa da China”, cujos integrantes se identificam como “faixa da China” (de faixa preta, graduação de lutas orientais) e são também organizadores e frequentadores do Baile da China, localizado na comunidade do Barro Vermelho, em São Gonçalo. Mas existe também um outro tipo de tropa, como a “Tropa da Escócia”, que reúne centenas de adolescentes identificados como membros do grupo pela presença de emojis da bandeira do país europeu ao lado do nome ou na bio do perfil nas redes.

A rede social do passarinho azul é o espaço predileto das tropas. Lá, eles se organizam em grupos privados e também no “Spaces”, ferramenta recém-lançada pela plataforma que permite a realização de chamadas em grupo que não ficam gravadas. Este é um ponto bem importante. Em primeiro lugar porque muitos traficantes e pessoas ligadas ao mundo do crime participam dessas ‘calls’, segundo porque há muitas meninas e meninos menores de idade que integram grupos como a “Tropa da Escócia” mantendo contato direto com a primeira turma. A prática de divulgar fotos e vídeos sensuais que são compartilhados aos montes na rede social funciona como um atrativo para os organizadores dos bailes. As meninas e meninos considerados mais atraentes são convidados semanalmente a ‘carimbar seus passaportes’ nas festas da cidade.

Já houve edições do Baile da Colômbia em Belo Horizonte - MG, mas o mais comum é ver jovens integrantes das tropas de outros estados (como Ceará, Bahia e Rio Grande do Sul), se organizarem para vir ao Rio (hospedando-se, quase sempre, na casa de algum outro membro da “Tropa”). Não que o pertencimento a tropas como a da Escócia esteja limitado à identificação ou presença física em determinado espaço; o território deles é virtual. Isso permite com que os fãs dos bailes-países que não podem viajar para e pelo Rio de Janeiro curtam o som carioca (via Spaces, inclusive) e contribuam para o engajamento e divulgação das festas, mesmo à distância.

Não surpreende que pessoas de cidades de fora do Rio e mesmo de outros países se sintam atraídas por essas festas. Afinal, são grandes produções, com equipamentos de som e luz de ponta, muito bem organizados e que não pararam nem mesmo durante a pandemia. Jovens e adolescentes de cidades como Cabo Frio, São Pedro da Aldeia, Macaé, Nilópolis e Niterói são frequentadores assíduos de bailes como o da Arábia (em Duque de Caxias), do Egito (no Chapadão) e da Romênia (na Vila Aliança), apenas para citar os mais conhecidos. Aqui, vale um adendo: nem sempre é possível traçar com clareza a origem do nome do baile-país. Sabe-se que o Baile do Japão, por exemplo, foi batizado assim porque esse era o apelido de um dos comandantes do tráfico da Vila Operária, em Duque de Caxias. Parte da motivação para a pesquisa e produção desse texto veio dessa curiosidade, a propósito. Quem souber o que leva as tropas e os bailes a elencar esses países em particular, por favor, conta pra mim.

Fugindo do lugar-comum óbvio da estigmatização, é importante reconhecer a potência da simbiose bailes-tropa-países. Existe ali um forte senso de identidade e pertencimento, que valoriza as características de favelas e comunidades, ao mesmo tempo em que reforça a importância do funk carioca como manifestação cultural de enorme relevância. O funk carioca conquistou, de fato, o mundo. “Viajei o mundo todo dentro do Rio de Janeiro”, de Mc Flavinho, virou sample em “Spring”, produção do famoso DJ canadense Freddie Dredd.

Por outro lado, é inegável que as lideranças das facções que dominam esses territórios buscam se apropriar da linguagem e do engajamento de grupos como a “Tropa da Escócia” para atrair potenciais consumidores dos produtos que comercializam nos bailes-países. Afinal, é muita mídia. E uma questão de geografia política também, já que o governo fluminense parece alheio a eventos sociopolíticos importantes para a constituição e exercício do poder em fragmentos territoriais cada vez maiores. A territorialização e desterritorialização mobilizada no ambiente digital não precisa nem deveria ser criminalizada. Porque não é sobre aliciamento, mas sobre como jovens foram capazes de criar uma forma legítima de engajamento e um sentido de pertencimento que rompe barreiras geográficas.

Cabe, ainda, fazer uma distinção dessa disputa local entre bailes (às vezes de territórios da mesma facção) dos conflitos entre facções e milícias, que também ganham ares internacionalistas na imprensa e na academia. O Complexo de Israel, que une tráfico e milícia, é um produto de anos de uma política de segurança falida, que, incapaz de determinar ações e práticas eficientes para promover o gerenciamento do território com base na garantia dos direitos humanos fundamentais, relegou milhares de cariocas e fluminenses a uma realidade de terror, morte, e exclusão.

Resta saber se seguiremos nessa mesma toada até que a inventiva e genuína “Tropa da Escócia” se transforme em uma “Tropa da China”, ou até que o Baile da Arábia seja proibido pelos traficantes evangélicos que ocupam o outro lado da Avenida Brasil.


Para saber mais:

FREIRE, Karla. Onde o Reggae é a Lei. Editora: Pitomba, 2018.



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