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Paz à guerra, guerra à guerra: a intervenção na Líbia em 2011

Por Guilherme Caruso

Em 2011, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) autorizou o uso da força na intervenção internacional na Líbia com o objetivo de proteger civis e dar fim à violência. Entretanto, ao agir sob o capítulo VII da Carta da ONU, a Resolução 1973 do CSNU instigou ainda mais violência. Mesmo instituições fortes, respaldadas pelo direito internacional e com consentimento quase universal, como a Carta da ONU, podem ter seus propósitos subvertidos. Instituições representam regras do jogo em uma sociedade, são constrangimentos que moldam a interação humana e estruturam as interações políticas, econômicas e sociais. Neste texto, argumento que apesar de buscar a paz, a Resolução 1973 e o capítulo VII da Carta, enquanto instituições, encorajaram a violência política de duas formas. Primeiro, a autorização do uso da força levou os países da OTAN a intervirem na Líbia com a finalidade política de regime change. Segundo, na busca de seu objetivo, a OTAN forneceu armamentos e táticas militares para rebeldes líbios, que usaram da violência política contra forças estatais e civis. Como resultado, a intervenção internacional dificultou a barganha pacífica entre o governo e os rebeldes, prolongou os custos e a duração do conflito e não foi capaz de fortalecer as já fragilizadas instituições domésticas da Líbia.


Resolução 1973: Responsabilidade de Proteger (R2P)?

Em 2011, parte da população líbia tomou as ruas para protestar contra o governo autoritário de Muammar al-Gaddafi. Essas manifestações fizeram parte do contexto que posteriormente ficou conhecido como Primavera Árabe. Os motivos pelos quais a população se revoltou variam entre diversos autores, mas é consenso que os manifestantes buscavam mudanças, dada sua insatisfação. Pearlman (2013) argumenta que emoções como raiva, alegria e orgulho podem levar os indivíduos a protestar, já Kuperman (2019) aponta que os rebeldes podem ter decidido protestar com a expectativa de que iriam vencer. Apesar de Gaddafi ter reprimido violentamente os protestos, não há consenso de quem iniciou a violência primeiro, os rebeldes ou o governo. A narrativa que chegou ao Ocidente em 2011 foi a de que Gaddafi estava reprimindo os manifestantes com violência indiscriminada. No entanto, Kuperman tenta demonstrar que os rebeldes que iniciaram a violência.

Após chegarem ao Ocidente os discursos do líder que representariam intenção de genocídio na cidade rebelde de Bengasi, o CSNU aprovou por unanimidade a Resolução 1973 em 17/03/2011 com 10 votos a favor e 5 abstenções (Alemanha, Brasil, China, Índia e Rússia). Agindo sob o capítulo VII da Carta da ONU, a resolução autorizou os Estados a tomarem “all necessary measures” para proteger civis, o que na linguagem do Conselho representa a autorização do uso da força. Essa intervenção aparentava ir ao encontro dos ideais da Responsabilidade de Proteger (R2P), um regime de proteção de direitos humanos que se tornou um compromisso político global endossado por todos os Estados-membros da ONU em 2005 para impedir genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. A Resolução 60/1 da Assembleia Geral estabeleceu que todos os Estados têm o dever de proteger suas populações, assim como a comunidade internacional tem o dever de assistir os Estados nesse objetivo caso não sejam capazes de cumpri-lo, inclusive usando o capítulo VII da Carta.

Ao romper a soberania líbia para proteção humanitária com os ideais de R2P, os princípios de não intervenção e não interferência em política doméstica dão espaço a princípios humanitários que desafiam o significado prático que “soberania” exerceu a partir da metade do século XX. No entanto, a resolução não representou uma vitória para o regime de R2P, pois instigou violência de forma a não salvaguardar o máximo de vidas, como será tratado na próxima seção. Em contraste, a intervenção pode ser vista sob o conceito de Racionalidade de Proteger, pois os Estados-membros do CSNU podem ter sancionado as medidas não por questões morais, mas por cálculo geopolítico enquanto atores racionais maximizando interesses. Na região, os interesses são diversos e variam de país para país: a Líbia é o país com as maiores reservas de petróleo da África; a intervenção daria apoio aos protestos da Primavera Árabe que poderiam representar uma guinada ao modelo democrático ocidental; o multilateralismo poderia sair fortalecido como mecanismo de resolução de conflitos, mesmo que junto ao militarismo.

Com a autorização do uso da força expressa institucionalmente, países ocidentais sozinhos e, depois, por meio da OTAN, usaram da violência contra a Líbia a fim de coibir a violência do Estado contra a população. Isso demonstra o militarismo e a institucionalização de respostas militares como mecanismo de resolução de conflitos em detrimento de barganhas pacíficas. Sem autorização do uso de tropas no território líbio, a OTAN impôs zona de exclusão aérea e bombardeou cidades controladas por Gaddafi. O propósito de impedir um genocídio em Bengasi e o uso indiscriminado da força foi atingido, porém os interventores não cessaram suas operações imediatamente, estendendo-as até o fim de outubro de 2011. A proteção de civis pró-Gaddafi não foi equivalente à de civis opositores. Se o objetivo da OTAN fosse somente proteger o maior número possível de vidas, não teria usado a força para atacar tropas do governo que estavam recuando e civis da cidade natal de Gaddafi, que o apoiava. Os interventores se empoderaram da Resolução 1973, que, enquanto instituição, afetou sua decisão de usar violência com fins políticos, não meramente humanitários.


Violência, política e falha de barganha

Nesta segunda seção, argumento que a intervenção da OTAN teve objetivo político de regime change e agravou o conflito na Líbia. A OTAN fez uma interpretação ampliada da Resolução 1973, usando a expressão “all necessary measures” para estender a intervenção até incluir seu fim último de mudança do governo, por meios coercitivos, a partir do claim de que para proteger civis era necessário derrubar Gaddafi, mantendo a legitimidade da intervenção perante a resolução. Os chefes de governo dos Estados Unidos, da França e da Grã-Bretanha, Barack Obama, Nicolas Sarkozy e David Cameron produziram juntos um op-ed declarando que “Nosso dever e nosso mandato sob a Resolução 1973 do CSNU é proteger civis, e nós estamos fazendo isso [...] é impossível imaginar um futuro para a Líbia com Gadaffi no poder”.

Além de ações como matar filho e netos de Gaddafi, países da OTAN e aliados forneceram armas, sistemas de defesa e enviaram oficiais para dar táticas aos rebeldes, tomando lado na guerra civil ao apoiar as forças anti-Gaddafi. A Grã-Bretanha enviou oficiais militares para aconselhar os rebeldes e estabelecer infraestruturas de comando e de defesa. Qatar, França e Estados Unidos forneceram armamentos e mísseis antitanque. Os Estados Unidos foram o país que mais investiu recursos nas operações. A despeito do embargo de armas à Líbia estabelecida pela Resolução 1970 do CSNU, a concessão proposta pela palavra “notwithstanding” no artigo operativo 4º da Resolução 1973 permitiu a interpretação de que a transferência de armas dos interventores estava em conformidade à resolução. Hillary Clinton, Secretária de Estado norte-americana à época, declarou: “Na resolução de 1973, há uma exceção, se os países ou organizações optarem por usá-la.” se referindo à possibilidade de fornecer armas aos rebeldes dada a exceção proposta por “notwithstanding”.

A intervenção foi um choque exógeno que modificou as relações governo-rebeldes, pois alterou a balança de poder em favor da oposição para continuar na luta contra Gaddafi, o que, sem a intervenção internacional provavelmente não seria plausível, dada anterior discrepância de forças. Kuperman (2013) argumenta que, se não fosse pela intervenção, os rebeldes teriam se rendido e aceitado as barganhas de Gaddafi em um período de possivelmente duas semanas. Os rebeldes fortalecidos pela OTAN usaram a violência contra forças governamentais e civis, incluindo torturas, aprisionamentos e estupros, como denunciado no relatório da Anistia Internacional.

A interferência da OTAN na guerra civil dificultou a barganha pacífica entre as partes. Os rebeldes, com apoio da OTAN, recusaram diversas ofertas de cessar-fogo de Gaddafi, a despeito do artigo operativo 1º da Resolução 1973 que o demandava para poupar civis. Fortalecidos e representados pelo Conselho Nacional de Transição (NTC) — uma coalizão de opositores a Gaddafi que foi posteriormente reconhecida como novo governo legítimo pela ONU — os rebeldes continuaram a luta, elevando possivelmente o número de mortes entre 6 e 10 vezes e a duração do conflito em seis meses. Gaddafi propôs o cessar-fogo, negociações para um governo constitucional e compensações a vítimas, todavia isso não foi suficiente para os rebeldes.

A falha de barganha pode ter sido causada por problemas de comprometimento, já que as propostas de acordo não eram críveis para ambos os lados: Gaddafi não desejava perder muito do seu poder e o NTC recusava-se a aceitar acordos até que o ditador fosse deposto, o que, somado à incerteza das afirmações e intenções de Gaddafi, impediu um cessar-fogo. Além disso, dados a desconsideração dos custos da guerra pela falta de accountability do governo de Gaddafi e o ímpeto rebelde de tomar o poder, a guerra civil perdurou até Gaddafi ser executado.


Conclusão

A OTAN usou instituições para legitimar suas operações e seu apoio aos rebeldes na Líbia. Juntos, usaram violência para depor o governo — não por acaso, uma semana após a morte de Gaddafi, a Resolução 2016 do CSNU revogou as medidas dos parágrafos operativos da Resolução 1973, inclusive a autorização do uso da força. O objetivo de levar paz à guerra proposto pelas instituições foi subvertido com a violência política que causou mais conflitos e mortes. Já em 2012, os líbios votaram em eleições parlamentares pela primeira vez, mas o desenvolvimento institucional não foi forte o suficiente para promover coesão interna e Estado de Direito. A Líbia é um país formado por diferentes povos e têm dificuldade para o estabelecimento de instituições que abranjam o país inteiro e regulem suas interações. O país ainda está enfrentando um processo de state-building — constituído pela criação, consolidação institucional, estabilização e desenvolvimento do Estado — com constituição provisória, e passou por outra guerra civil iniciada em 2014. Hoje, diferentes autoridades controlam o país, inclusive warlords e milícias.


NOTAS:

1 North, Douglass C. “Institutions.” The Journal of Economic Perspectives, vol. 5, no. 1, American Economic Association, 1991, pp. 97–112.


2 Pearlman, Wendy. “Emotions and the Microfoundations of the Arab Uprisings.” Perspectives on Politics, vol. 11, no. 2, 2013, pp. 387–409. Kuperman, Alan. "Did the R2P Foster Violence in Libya?" Genocide Studies and Prevention: An International Journal, vol. 13, no. 2, 2019, pp. 38-57.


3 Kuperman, Alan. "Did the R2P Foster Violence in Libya?" Genocide Studies and Prevention: An International Journal, vol. 13, no. 2, 2019, pp. 38-57.


4 Essa autorização está expressa no artigo operativo 4º da Resolução 1973: “[The Security Council] Authorizes Member States that have notified the Secretary-General, acting nationally or through regional organizations or arrangements, and acting in cooperation with the Secretary-General, to take all necessary measures, notwithstanding paragraph 9 of resolution 1970 (2011), to protect civilians and civilian populated areas under threat of attack in the Libyan Arab Jamahiriya, including Benghazi, while excluding a foreign occupation force of any form on any part of Libyan territory, and requests the Member States concerned to inform the Secretary-General immediately of the measures they take pursuant to the authorization conferred by this paragraph which shall be immediately reported to the Security Council.” Disponível em: https://www.undocs.org/S/RES/1973%20(2011).


5 Murray, Robert W. “Humanitarianism, Responsibility or Rationality? Evaluating Intervention as State Strategy”. In Hehir, A., Murray, R. (eds.) Libya, the Responsibility to Protect and the Future of Humanitarian Intervention. Palgrave Macmillan, London, 2013.


6 Atack, Iain. “Ethical Objections to Humanitarian Intervention.” Security Dialogue, vol. 33, no. 3, Sage Publications, 2002, pp. 279–92.


7 Kuperman, Alan. “A Model Humanitarian Intervention? Reassessing NATO's Libya Campaign.” International Security, vol. 38. no. 1, 2013, pp. 105-136.


8 Brockmeier, Sarah; Stuenkel, Oliver; Tourinho, Marcos. “The Impact of the Libya Intervention Debates on Norms of Protection”, Global Society, vol. 30, no. 1, 2016, pp. 113-133.


9 Terry, Patrick CR. “The Libya Intervention (2011): Neither Lawful, nor Successful.” The Comparative and International Law Journal of Southern Africa, vol. 48, no. 2, Institute of Foreign and Comparative Law, 2015, pp. 162–82.


10 Kuperman, Alan. “A Model Humanitarian Intervention? Reassessing NATO's Libya Campaign.” International Security, vol. 38. no. 1, 2013, pp. 105-136.


11 Esse embargo está expresso no artigo operativo 9º da Resolução 1970: “[The Security Council] Decides that all Member States shall immediately take the necessary measures to prevent the direct or indirect supply, sale or transfer to the Libyan Arab Jamahiriya, from or through their territories or by their nationals, or using their flag vessels or aircraft, of arms and related materiel of all types, including weapons and ammunition, military vehicles and equipment, paramilitary equipment, and spare parts for the aforementioned, and technical assistance, training, financial or other assistance, related to military activities or the provision, maintenance or use of any arms and related materiel, including the provision of armed mercenary personnel whether or not originating in their territories…” Disponível em: https://www.undocs.org/S/RES/1970%20(2011).


12 Trecho do artigo operativo 4º da Resolução 1973: “…to take all necessary measures, notwithstanding paragraph 9 of resolution 1970 (2011), to protect civilians and civilian populated areas…” O artigo está reproduzido na íntegra na nota 7ª.


13 Disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/MDE19/025/2011/en/.


14 A demanda por cessar-fogo está expressa no artigo operativo 1º da Resolução 1973: “[The Security Council] Demands the immediate establishment of a cease-fire and a complete end to violence and all attacks against, and abuses of, civilians.”


15 Kuperman, Alan. “A Model Humanitarian Intervention? Reassessing NATO's Libya Campaign.” International Security, vol. 38. no. 1, 2013, pp. 105-136.


16 Fearon, James D. “Rationalist Explanations for War.” International Organization, vol. 49, no. 3, 1995, pp. 379–414.


17 Essa revogação está expressa nos artigos operativos 5º e 6º da Resolução 2016: “[The Security Council] Decides that the provisions of paragraphs 4 and 5 of resolution 1973 (2011) shall be terminated from 23.59 Libyan local time on 31 October 2011” e “[The Security Council] Decides also that the provisions of paragraphs 6 to 12 of resolution 1973 (2011) shall be terminated from 23.59 Libyan local time on 31 October 2011”. Disponível em: https://undocs.org/S/RES/2016(2011).


18 Fukuyama, Francis. “Political Order and Political Decay: From the Industrial Revolution to the Globalization of Democracy”. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2014.

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