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ONDA PROGRESSISTA: Bolívia



A entrada da Bolívia no século XXI foi marcada pelas constantes mobilizações populares contra os efeitos domésticos da inserção do país na globalização. Na política nacional, as contestações contra as tentativas de criminalização do cultivo da folha de coca - ação diretamente ligada à política estadunidense de guerra às drogas - levaram as demandas do movimento cocalero a serem reconhecidas como práticas culturais. Já a Guerra da Água, isto é, as manifestações contra a privatização do sistema de águas de Cochabamba - uma exigência do Banco Mundial para que a dívida externa do país fosse perdoada -, fez com que os movimentos campesinos e indígenas também passassem a partilhar do protagonismo sociopolítico boliviano.

O aumento da participação dos povos originários no cenário político da Bolívia teve seu ápice com a promulgação do Pacto de Unidad entre as organizações indígenas e federações campesinas do país. Esse documento sintetizava as exigências desses movimentos sociais em terem seus modos de autogestão e relações com a natureza reconhecidos pelo Estado boliviano. O protagonismo dos assinantes do Pacto de Unidad foi acompanhado pela ascensão do partido Movimiento al Socialismo (MAS) e da figura de Evo Morales, principal representante desse partido. Entretanto, a relação do MAS com as revoltas populares que tomaram conta da Bolívia entre 2000 e 2005 sempre foi ambígua, flutuando entre a adesão com as demandas dos movimentos sociais e o comprometimento com as antigas oligarquias dominantes da política e da economia bolivianas.

A chegada do MAS ao Executivo em 2005 deu esperanças aos assinantes do Pacto de Unidad. Eles esperavam que as demandas pelo reconhecimento de suas culturas e a defesa da natureza fossem escutadas e postas em prática pelo novo governo - assim reduzindo a conflituosidade dominante dos movimentos sociais nos anos anteriores. A nova constituição de 2009 parecia confirmar essa hipótese ao colocar em suas linhas o intuito de formar um “Estado Plurinacional” que desse conta do caráter multissocietal da Bolívia, e a defesa dos valores do Bem Viver e da relação harmônica com a Mãe Terra (Pacha Mama). Essa aparência, no entanto, foi perdendo respaldo das comunidades campesinas e dos povos indígenas com a adesão do governo MAS à uma agenda neoextrativista, visível no progressivo rebaixamento que Morales impôs aos requisitos ambientais para a exploração de hidrocarbonetos, minérios e terras cultiváveis; e à manutenção do domínio estatal sobre todo o território nacional.

As ações do MAS - que se tensionavam os princípios da autogestão e do Bem Viver - levaram à uma ruptura gradual dos movimentos campesinos e indígenas com o partido, sendo o conflito em torno do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Sécure (Tipnis) o principal momento de inflexão nesse processo. Neste episódio, as organizações indígenas contestaram a tentativa do governo Morales em construir uma rodovia que atravessava a área de proteção ambiental e território indígena do Tipnis. A brutal repressão governamental e a adesão de setores dos movimentos campesinos e dos cocaleros à construção da rodovia levaram à retirada de grandes organizações sociais do Pacto de Unidad e o rompimento de boa parte do apoio popular ao MAS.

Para a pesquisadora e militante anarquista Maria Galindo, a chegada do MAS ao poder na Bolívia acelerou um processo de privatización de la política, cuja característica fundamental é a eliminação da participação popular e da presença de diferentes modelos de sociedade da política e sua transformação em espaços de marketing, onde apenas um número restrito e bastante específico de atores interfere nos rumos da sociedade. A privatización de la política é perceptível tanto na repressão e criminalização do MAS contra os movimentos sociais quanto nas sucessivas movimentações feitas por Evo Morales para manter-se no poder.

Tendo exercido formalmente os dois mandatos permitidos - que, na realidade, foram três, com primeiro descartado por ter ocorrido antes da vigência da constituição de 2009 -, Morales chamou em 2016 um plebiscito para consultar a população sobre a possibilidade de mais um mandato. A proposta, no entanto, foi derrotada, mas Morales não reconheceu o resultado e alterou a legislação que o proibia de se candidatar novamente. Após o MAS vencer as eleições de 2019 por uma pequena margem, a população boliviana tomou as ruas em protestos que tiveram a participação de setores tradicionais do país e antigos assinantes do Pacto de Unidad. Somadas às manifestações multitudinárias que ocorriam na Bolívia, surgiram os motins das polícias e o “pedido” de renúncia de Evo Morales pelas Forças Armadas. Após pressões de opositores, Morales reconheceu a impossibilidade de manter-se no cargo, renunciou e foi substituído pela senadora Jeanine Añez. Devendo assumir um mandato interino enquanto não fossem convocadas novas eleições, Añez manteve-se no cargo durante um ano enquanto adiava o pleito indefinidamente, que, ao ser realizado, teve o candidato do MAS, Luis Arce, como vitorioso.

Percebe-se no cenário conturbado da sociedade boliviana nos últimos a força do processo de privatización de la política, cuja capacidade em reduzir o horizonte de mudanças foi tão significativa que impossibilitou a ascensão de novos protagonistas no cenário político após a derrocada do MAS, gerando, consequentemente, o retorno deste ao Executivo. O descolamento entre as demandas dos povos indígenas e os objetivos do MAS revelam a necessidade de não se interpretar o golpe contra Evo Morales em 2019 como uma conspiração internacional contra a esquerda latino-americana, mas como a derrocada do projeto político do progressismo boliviano devido à suas próprias contradições.


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