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O que são as missões de paz?

Atualizado: 14 de ago. de 2021

O que são as missões de paz e como as missões da década de 1990 foram responsáveis por novas abordagens das missões de paz?


Faganello (2013) define as missões de paz como ações que auxiliam um Estado em situações de necessidade. Esta ação é uma ferramenta que pode ajudar os países devastados por conflitos a criarem condições para alcançar a paz. Para a ONU, as operações de manutenção da paz ajudam os países a trilharem o difícil caminho do conflito à paz. Já para Michael Pugh (2008, p. 407), em artigo no livro de Williams (2008, et al), as operações de paz vão desde a observação e monitoramento até a construção da paz em sociedades devastadas pela guerra.

A implantação da missão de paz em territórios em conflitos depende de aprovação unânime dos cinco membros do Conselho de Segurança (CS) da ONU: China, Rússia (ex-URSS), França, Reino Unido e Estados Unidos (EUA). Para uma ação ser posta em prática, todos os membros precisam aprovar com unanimidade, ou seja, não pode haver veto. Durante o período da Guerra Fria, tanto os EUA quanto a URSS fizeram o uso do veto, travando a atuação do CS. Com o fim da Guerra, o CS foi destravado, o que permitiu a realização das missões de paz em vários conflitos como, por exemplo, na guerra da Bósnia e Herzegovina.

Entretanto, suas abordagens sofreram modificações tendo em vista as denúncias de abuso sexuais cometidas pelos blue helmets. Entre as principais denúncias uma é considerada decisiva para refletirmos sobre as fragilidades das operações. A ex-policial estadunidense Kathy Bolkovac, uma funcionária terceirizada contratada pela ONU para trabalhar na United Nation Mission for Bosnia-Herzegovina (UNMIBH), denunciou para a Corte Britânica que o comandante geral da UNMIBH, General Lewis Mackenzie, sabia da existência dos casos de tráfico sexual nas cidades bósnias, mas preferiu silenciar e/ou “acobertar para que não manchasse a imagem da ONU” (BOLKOVAC, 2016, p. s/p).

Com isso, as missões sofreram alterações. Passam a ser suas abordagens: Peacemaking, Peacekeeping Peacebuilding e Peace Enforcement. O Quadro 1 sintetiza as abordagens das operações de paz a partir da análise de Faganello (2013), exemplificando o papel de cada uma delas. Para a elaboração da tabela, também utilizamos as informações disponíveis no site da ONU sobre as Missões de Paz realizadas nos seguintes países: Croácia (UNPROFOR), Bósnia e Herzegovina (UNMIBH), Chipre (UNFICYP) e República Democrática do Congo (MONUSCO). Com isso buscamos categorizar o modus operandi das operações.

Peacemaking Esse instrumento busca solucionar conflitos em andamento por intermédio de ações diplomáticas. Seu objetivo é trazer as partes hostis a uma composição que resulte em acordo de paz ou cessar-fogo. A UNPROFOR foi inicialmente estabelecida na Croácia para garantir a desmilitarização de áreas designadas e para tentar um acordo de cessar fogo no conflito. Posteriormente o mandato foi estendido à Bósnia e Herzegovina (UNMIBIH) para apoiar a entrega de ajuda humanitária, monitorar "zonas de exclusão aérea" e "áreas seguras" Peacekeeping É um instrumento utilizado pela ONU e por outros atores internacionais para a manutenção da paz e da segurança internacional. Como a manutenção da paz é sua tarefa principal, torna-se essencial para o desdobramento de uma operação de manutenção da paz um esforço anterior de peacemaking que tenha permitido às partes alcançar o cessar-fogo ou acordo de paz. Criada em 1995, a UNMIBH exerceu uma ampla gama de funções relacionadas às atividades de aplicação da lei e reforma da polícia na Bósnia e Herzegovina. A Missão também coordenou outras atividades da ONU no país relacionadas com ajuda humanitária e refugiados, desminagem, direitos humanos, eleições e reabilitação de infraestrutura e reconstrução econômica. Após a conclusão bem-sucedida do seu mandato, a UNMIBH foi encerrada em 31 de dezembro de 2002. Peacebuilding Instrumento recente, reflexo das crises da década de 1990, envolve uma série de medidas voltadas para a redução do risco de retomada do conflito a partir do fortalecimento das capacidades nacionais. Trata-se de um processo complexo e de longo prazo que tem como objetivo criar as condições necessárias para a paz duradoura. Em suma, busca tratar o conflito em sua raiz, bem como os problemas estruturais que levaram àquela situação. O momento adequado para o desdobramento do peacebuilding é o que sucede ao peacekeeping, isto é, o momento em que a paz se tornou realidade (pós-conflito) no contexto interestatal. O Força para Manutenção da Paz das Nações Unidas no Chipre (UNFICYP) foi originalmente criado pelo Conselho de Segurança em 1964 para evitar mais combates entre as comunidades cipriota grega e cipriota turca. Após as hostilidades de 1974, o Conselho atribuiu à Força o mandato de realizar certas funções adicionais. Na ausência de uma solução política para o problema de Chipre, o UNFICYP permaneceu na ilha para supervisionar as linhas de cessar-fogo, manter uma zona-tampão, realizar atividades humanitárias e apoiar a missão de bons ofícios do Secretário-Geral. É a missão de paz mais longa da ONU pois vigora até os dias atuais. Peace Enforcement O instrumento de ``peace enforcement” envolve a aplicação, com a autorização do Conselho de Segurança e sem o consentimento do Estado objeto da intervenção, de inúmeras medidas coercitivas, inclusive o uso da força militar. Tais medidas buscam restabelecer a paz e a segurança internacionais em situações nas quais o órgão concluiu haver ameaça à paz, ruptura da paz ou atos de agressão. Peace enforcement, portanto, tem a ver com as atividades previstas no capítulo VII da Carta da ONU que permitem ao Conselho de Segurança determinar quais atos constituem ameaça ou ruptura da paz e da segurança internacionais e aplicar medidas de enforcement a fim de reprimi-los. Estas se revestem tanto da forma de sanções econômicas, políticas e diplomáticas quanto da forma de ações militares.A Missão de Estabilização da Organização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO), foi criada em julho de 2010 para substituir a missão anterior e para estabelecer a paz no Estado possui autorização para usar todos os meios necessários para cumprir o seu mandato relativo, entre outras coisas, à proteção de civis, pessoal humanitário e defensores dos direitos humanos sob ameaça iminente de violência física e apoiar o Governo da RDC em seu esforços de estabilização e consolidação da paz.


Como já mencionado, com o fim da Guerra Fria e o destravamento do CS da ONU, a situação e a natureza das operações de manutenção da paz mudaram bastante, pois antes as operações possuíam cunho tradicional de ajuda humanitária. Com as novas abordagens, criadas após as missões na década de 1990, houveram novas aplicabilidades.

A principal mudança ocorrida foi no consentimento do país anfitrião. Uma vez que o consentimento é manifestado, as forças de manutenção da paz podem entrar em prática, ou seja, o desdobramento das forças de manutenção da paz deveria respeitar a soberania nacional. Outra mudança foi a criação do Memorandum Of Understanding e algumas resoluções.

Segundo Faganello (2013, p. 189) a maneira de abordagem da ONU mudou drasticamente em meados da década de 1990. Isso fica evidente em dois casos: quando a ONU em julho de 1993, que estava destacando 78.444 militares, um terço deles nos Bálcãs, diminui a cota após o desastre na Somália e; com os acordos de Dayton para a Bósnia, no qual a OTAN assumiu a responsabilidade pelas forças militares. No final da década de 1990, o número de funcionários nas operações da ONU caiu para menos de 15 (quinze) mil. Isso mostra que a ONU teve sérias dificuldades em ajustar à demanda pela imposição da paz em conflitos internos (FAGANELLO, 2013, p.124-125).

Em 2000, o CS da ONU aprovou resolução (Resolução 1325 de 31 de outubro) insistindo na integração das perspectivas de gênero nas operações de paz. Após novos relatos de abuso sexual cometidos tanto por civis, quanto por soldados nos Bálcãs, na República Democrática do Congo e em outros lugares, o Príncipe Raad Zeid conduziu uma investigação e elaborou um relatório recomendando medidas legais para erradicá-lo (ZEID, 2005, s/p).

O conceito de estupro como arma de guerra só foi estipulado de maneira significativa, no início dos anos 2000, depois que se tomou conhecimento dos vários absurdos que ocorreram durante o conflito, dentre eles as violações dos Direitos Humanos, a exemplo dos campos de concentração criados pelo governo sérvio, os campos de estupro, limpeza étnica e do estupro sistemático das mulheres bósnias. O Tribunal Penal Internacional também decidiu que o estupro cometido de forma ampla ou sistemática com base em razões políticas, sociais ou religiosas e visando a população civil é crime contra a humanidade. Mais importante, esses desenvolvimentos colocaram firmemente os casos de estupro ocorridos durante os conflitos armados em uma discussão mais ampla sobre as obrigações de responsabilizar as nações por seus crimes.

Em vista às denúncias foi criado o Memorandum Of Understanding (MOU) da ONU. O documento destaca os procedimentos que devem ser seguidos após o recebimento de uma reclamação: em primeiro lugar, o chefe de missão inicia pesquisa primária e uma vez autenticado os fatos, relatórios e documentos de investigações são transferidos para o Secretário-Geral Adjunto de Administração de Recursos Humanos (Secretário-Geral Adjunto para Pessoal Gestão de Recursos), que determinará se a investigação seguirá. Entretanto, os Capacetes Azuis não pertencem à Convenção Geral e possuem imunidades, privilégios e status legal no SOFA (Status Of Forces Agreement). Portanto, os próprios membros da missão farão a investigação, e somente os soldados que possuem vínculo com a ONU sofrerão as sanções, pois os terceirizados são julgados pelos Estados ao qual possuem vínculo.

O Memorandum of Understanding (MOU) é o contrato firmado entre as Nações Unidas e o TCCs (Troop contributing country) com base no modelo de MOU, mas adaptado às especificidades de determinada missão de paz. Nesse documento, assinado pelo representante da missão permanente do país junto à Organização e pelo Subsecretário-Geral do DPKO, ficam estabelecidas as responsabilidades administrativas e logísticas entre a ONU e o país contribuinte. Além disso, o documento contém regras de conduta a serem seguidas pelos capacetes azuis e o compromisso dos TCCs de exercerem sua jurisdição sobre aqueles que forem responsabilizados por ações criminosas (FAGANELLO, 2013, p.53-54).

No que tange aos crimes cometidos pelos blue helmets no território da missão, a seção 47b do MOU estipula que os militares estão vinculados à jurisdição nacional exclusiva do país. Portanto, a exploração e o abuso sexual – considerados crimes segundo as leis do país anfitrião – devem ser processados ​​no país onde o autor do crime é nacional. No início dos anos 2000, foi criada pelo Conselho de Segurança a resolução 1325 – Landmark Resolution on Women, Peace and Security–, a respeito de mulheres, paz e segurança. A resolução trata sobre a importância do papel da mulher em questões de resolução de conflitos e da construção da paz. Defende a participação igualitária das mulheres nos processos de paz e alerta ainda para a necessidade de uma perspectiva de gênero e de proteção das mulheres vítimas de violência de gênero (ONU, 2000, s/p).

Entretanto, apesar dos esforços da ONU serem de suma importância, no ano de 2016 o jornalista do portal DW Azer Slanjankic, entrevistou Kathy Bolkovac para saber qual seria a opinião dela a respeito do escândalo na República Centro-Africana. Na entrevista ela afirmou que não vê mudanças na conduta da organização diante de mais um escândalo envolvendo abusos sexuais tendo envolvimento dos capacetes azuis “Não considero confiáveis, em absoluto, os esforços da ONU nos últimos 15 a 20 anos para coibir efetivamente o abuso sexual de mulheres e menores durante as missões de paz.”(BOLKOVAC, 2016, s/p). Outro fato alarmante destacado por Bolkovac (2016, s/p) durante a entrevista, é que os casos denunciados no início dos anos 2000, não foram levados a julgamento e os investigadores de direitos humanos não obtiveram a permissão para conduzir tais investigações completas. Além disso, os suspeitos foram rapidamente retirados da missão ou transferidos, enquanto as meninas eram enviadas de volta aos seus países de origem.

Contudo, a denúncia de Kathy Bolkovac fez o mundo descobrir um lado das missões de paz que a ONU fez de tudo para esconder: a exploração sexual promovida pelos capacetes azuis. Ela denunciou os casos de abuso na corte britânica nos anos 2000, porém até hoje os acusados não foram julgados e novas denúncias vieram a público no ano de 2016, na República Centro-Africana.

Apesar dos esforços da ONU serem de grande valia, no que diz respeito ao MOU e as resoluções criadas, aparentemente, elas não estão sendo postas em prática, e as investigações são falhas, pois são os próprios chefes das missões de paz que decidem se a denúncia será investigada, e os soldados que tiverem vínculo com a organização sofrem as sanções, enquanto os soldados terceirizados são julgados no país que o contratou, ou seja, os soldados contratados por empresas de segurança dos Estados que estão envolvidos na missão são julgados pelos Estados ao qual possuem vínculo.


REFERÊNCIAS

ANJOS, Cláudia Giovannetti Pereira dos. Atuação do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas nas crises humanitárias na década de 1990-2007. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

FAGANELLO, Priscila Liane Fett. Operações de Manutenção da Paz da ONU: de que forma os Direitos Humanos revolucionaram a principal ferramenta internacional da paz. 1 ed. Brasília: Editora FUNAG, 2013.

LIMA, Tamires. A Guerra na Bósnia e o Acordo de Dayton: a reformulação do Sistema e Segurança Europeu, 2017.

ONU. Concluding comments of the Committee on the Elimination of Discrimination against Women: Bosnia and Herzegovina, 1994. Disponível em < https://bit.ly/32zY08e> Acesso em 14 jan. 2021.

SLANJANKIC, Azer. ONU acobertou casos de abuso sexual por capacetes azuis. DW, Berlim, 03 de março de 2016. Disponível em: <https://p.dw.com/p/1I6uO>. Acesso em 22 de março de 2021.

TROPA de paz da ONU é acusada de mais abusos na Rep. Centro-Africana. G1, 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/01/tropa-de-paz-da-onu-e-acusada-de-mais-abusos-na-rep-centro-africana.html#:~:text=A%20ONU%20denunciou%20nesta%20sexta,de%20paz%20internacional%20desde%202014>. Acesso em 20 de março de 2021.


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