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O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos



“A maldição da humanidade foi que esses dois feixes incongruentes tivessem sido amarrados juntos - que no ventre angustiado da consciência aqueles gêmeos lutem continuamente. Como, então, foram dissociados?”


Robert Louis Stevenson



Navegando contra a política do mal menor e o adiamento eterno da crítica radical, “O médico e o monstro: uma leitura do progressismo latino-americano e seus opostos” constrói uma interpretação original sobre a ascensão da extrema-direita na região após os anos da Onda Progressista. Daniel Feldmann e Fábio Luis Barbosa distanciam-se das análises mais compartilhadas sobre essa transição ao não atribuírem suas causas aos “inimigos de sempre” das esquerdas latino-americanas (elites dominantes, imperialismo estadunidense, os meios de comunicação etc.) - afinal de contas, eles nunca deixaram de interferir ativamente na história da região – mas às próprias contradições de governos que foram incapazes de superar a lógica autodestrutiva da vida no capitalismo contemporâneo.

Diante do colapso da modernização, as boas intenções dos governos progressistas de melhorar a vida das pessoas na região sem romper com essa “lógica sacrificial” – sacrifício presente no tempo dispendido com cursos de desenvolvimento pessoal, nas horas extras de trabalho, nos fins de semana não descansados, nas refeições não realizadas etc.- condenaram seus representantes a implementar formas de contenção da crise que não apenas foram ineficazes nesse objetivo, como também aceleraram aquilo que buscaram conter. Sem enfrentar os problemas de seus países desde a raiz, o progressismo latino-americano agravou a condição mercantil do tecido social na região, regredindo as cadeias produtivas e atomizando ainda mais a existência das pessoas na América Latina. Esse movimento contraditório caracterizado pelo acirramento daquilo que se busca controlar é explicado pelos autores por meio de três conceitos: contenção aceleracionista, progressismo regressivo e neoliberalismo inclusivo.


Contenção aceleracionista:


O primeiro conceito, a contenção aceleracionista, revela uma dinâmica de tentativas de controle e administração da corrosão de todas as esferas da vida que instrumentaliza elementos característicos dessa própria corrosão. Em outras palavras, para atingir seus objetivos de redução das desigualdades e expansão da cidadania dentro dos marcos do capitalismo, o progressismo mobiliza políticas e práticas que intensificam o derretimento da sociedade em que vivemos. Um exemplo dessa dinâmica é percebido nas políticas educacionais dos governos petistas no Brasil, que tendo as universidades privadas como principal pilar da expansão do ensino superior – via programas de transferência de dinheiro público, como ProUni e FIES –, foram bem-sucedidas no aumento do número de jovens com ensino superior no país. Porém, por mais que a conquista do diploma tenha possibilitado o acesso de muitos desses jovens a empregos de maior qualidade, ela foi alcançada por meio de uma formação completamente orientada pela ideologia do mercado e voltada a inserção no mercado de trabalho, possuindo pouco ou nenhum compromisso em cultivar o pensamento crítico sobre país. Além disso, até mesmo a qualidade dos empregos assumidos por esses jovens pode ser contestada, tendo em vista que 95% das vagas criadas durante a primeira década do século XXI tinham remuneração de até 1,5 salário mínimo. Em síntese, ao tentar expandir o acesso ao ensino superior e a empregos de maior qualificação no Brasil por meio das universidades privadas, os governos petistas agravaram a atomização da vida, a corrosão do pensamento crítico e a frustração com postos de trabalho precários e mal-remunerados – elementos que abriram caminho para a consolidação do bolsonarismo como fenômeno político relevante no país.

Outro exemplo da contenção aceleracionista pode ser encontrada na relação dos governos petistas com as populações não-brancas do Brasil. Dando continuidade ao projeto da ditadura militar de Brasil Potência, os progressistas brasileiros construíram grandes obras e projetos de infraestrutura que passaram por cima dos povos originários de toda a América do Sul. O caso mais emblemático é a construção da usina de Belo Monte, que afetou o modo de vida dos povos que viviam na Volta Grande do Xingu de maneira irreversível, configurando um verdadeiro etnocídio(1). A construção da usina forçou a expulsão de muitas famílias indígenas para os centros urbanos, pois o represamento de grande volume de água pela hidrelétrica impossibilitou que essas seguissem vivendo da pesca devido à morte dos peixes que viviam no rio. Mas não foram apenas os povos originários que se vitimaram com os governos petistas: junto de sua maior inserção no ensino superior, as populações negras do Brasil sofreram com o aumento da violência policial e do encarceramento em massa. Se o crescimento de 157% da taxa de aprisionamento no Brasil entre 2000 e 2016, e o de 18,2% de homicídios de negros durante os governos Lula e Dilma, são capazes de revelar o extermínio ocorrido durante as gestões petistas, o papel dele como política de Estado é perceptível nas falas do ex-presidente Lula de que “não se combate o crime com pétalas de rosa”, após a chacina no Complexo do Alemão em 2007, e de que “agora a polícia bate em quem tem que bater”, quando Sérgio Cabral implementou as UPPs no Rio de Janeiro. Por fim, em meio às tentativas de conter elementos desintegradores da sociedade brasileira – o acesso à eletricidade e a violência urbana – o petismo acelerou dois dos mais antigos desses elementos: os genocídios das populações negra e indígena. Genocídios estes que foram também foram intensificados por Bolsonaro, mas em escalas muito maiores e sem nenhuma máscara de civilidade por trás do extermínio.


Neoliberalismo inclusivo e progressismo regressivo:


Essa máscara de civilidade é o que permite a Feldmann e Luis Barbosa construírem o conceito de neoliberalismo inclusivo, isto é, a busca de consolidar a cidadania salarial por meio da mobilização da racionalidade do empreendedor de si mesmo que constituí o neoliberalismo. Entendendo o neoliberalismo não como uma política econômica ou como uma escola de pensamento, mas como um governo das condutas a partir de interiorização na mentalidade das pessoas de que elas são capitais humanos em constante concorrência com seus semelhantes e que, consequentemente, precisam estar aperfeiçoando-se a todo o momento; os autores argumentam que as tentativas do progressismo em garantir a cidadania das pessoas pela via da expansão do consumo acelerou a submissão da sociedade aos imperativos da lógica sacrificial do capitalismo contemporâneo. Melhorando suas vidas por essa via, os muitos beneficiários dessa tática que saíram de condições de miséria fizeram essa transição de maneira individualizada, não percebendo essa melhora como resultado de um projeto coletivo, mas sim como fruto de seus próprios esforços no mercado de trabalho. A busca pela cidadania salarial gerou, portanto, redução do horizonte comunitário entre as pessoas e maior despolitização da sociedade, assim fortalecendo o governo das condutas que caracteriza o neoliberalismo. Nessa interpretação, as políticas assistencialistas dos governos progressistas estariam mais distantes das inéditas e transformadoras alternativas de mudança da realidade latino-americana do que das ações governamentais possíveis de serem concretizadas frente a um modo de produção incapaz de absorver força de trabalho.

A queda na capacidade de inserir as pessoas no mercado de trabalho é uma consequência do desemprego estrutural, isto é, a substituição crescente da força de trabalho pelas novas tecnologias. Longe de ser um fenômeno superável pelas intervenções dos Estados, o desemprego estrutural seria produto da “contradição em processo” do capital, ou seja, da necessidade constante dos donos dos meios de produção de reduzirem seus custos com força de trabalho para manterem seus negócios vivos. Enfrentando a todo o momento a concorrência de seus semelhantes, os capitalistas são incentivados a investir no desenvolvimento das forças produtivas para aumentar a produtividade de suas indústrias, levando à expulsão dos trabalhadores do chão de fábrica. A substituição do trabalho vivo das pessoas pelo trabalho morto das máquinas no processo de produção leva, por sua vez, à redução na massa total de valor produzida na sociedade, tendo em vista que – como revelado pela da economia política (Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx etc.) - a única mercadoria capaz de produzir valor é a força de trabalho.

Feldmann e Luis Barbosa percebem nessa dinâmica do capitalismo a origem de dois fenômenos muito discutidos pelas ciências humanas ao longo das últimas décadas: a financeirização e a “acumulação por despossessão”. Tornando-se impossível recuperar os níveis anteriores de lucro com a simples produção de mercadorias, os capitalistas dedicariam cada vez mais esforços aos ganhos com a compra de ativos e títulos dos governos e a busca de novos espaços de acumulação. Enquanto o primeiro representa um negócio fácil ao tirar de cena as obrigações de se arcar com todos os custos necessários para a produção e circulação de mercadorias, o segundo é atraente por possibilitar a acumulação de riqueza em esferas que antes não eram orientadas pela busca incessante por lucro. Nesta perspectiva, as privatizações, o extrativismo, o desmonte das legislações trabalhistas, o fenômeno da “uberização” e o microempreendedorismo, seriam todas formas de “acumulação por despossessão” encontradas pelos capitalistas para continuar enriquecendo em meio a redução da massa total de valor produzida.

Interpretando a financeirização e a “acumulação por despossessão” como válvulas de escape para capitais em busca da reprodução de seus ganhos em um contexto de crise estrutural do capitalismo, os autores argumentam que neoliberalismo inclusivo dos governos progressistas apenas pôde ser realizado graças a esses fenômenos. Sobre o fundamento da exportação de produtos primários em um contexto do que aparecia como um boom das commodities, os governos progressistas financiaram os programas assistencialistas e as grandes obras de infraestrutura de suas gestões. Foi justamente quando as aparências caíram e o boom revelou ser, na realidade, uma consequência da bolha global de capital fictício que estourou em 2008 – pois o aumento do preço das commodities era alimentado pela economia chinesa, que, por sua vez, motorizava-se pela propriedade de títulos da dívida dos Estados Unidos – que se tornou impossível para os governos da Onda Rosa posicionarem-se como agentes da mudança na América Latina. Pelo contrário, a situação trouxe à tona que esses representavam um progressismo regressivo, isto é, um modelo de crescimento econômico e de redução das desigualdades sustentado por pilares econômicos que reafirmam a dependência externa e a predação da natureza na região. Ao apostar nos recursos oriundos da exportação de commodities para financiar suas políticas, o progressismo não apenas acelerou a desindustrialização da América Latina como também fortaleceu ainda mais o agronegócio ao mesmo tempo em que apagava as culturas dos povos originários. Hoje, este mesmo agronegócio aproveita do dólar alto para aumentar os seus lucros com a venda para os mercados internacionais, deixando o consumo interno em segundo plano(2).


Médicos e monstros no Brasil pandêmico:


Se os autores de “O médico e o monstro” percebem na contenção aceleracionista, no neoliberalismo inclusivo e no progressismo regressivo, a essência das ações bem-intencionadas dos governos progressistas para solucionar os problemas latino-americanos; qual seria, portanto, a essência de seus opostos? Em outras palavras, se os médicos tentam acabar com as doenças utilizando remédios ineficazes e aceleradores desta, qual o papel dos monstros? A partir do exemplo brasileiro durante a pandemia de COVID-19, Feldmann e Luis Barbosa mostram como a extrema-direita governante do país está menos próxima de ter chegado à condução do Estado por uma série de acidentes do que de ascender à sua atual posição graças à continuidade da corrosão social que afeta o Brasil – e o resto do mundo.

Bolsonaro, ao construir uma autoimagem de candidato antissistêmico durante as eleições de 2018, angariou para seu entorno o apoio de milhões de brasileiros insatisfeitos e incrédulos com as promessas nunca realizadas pela institucionalidade e seus fiadores. Com ciência da descrença da população de que os problemas do país poderiam ser solucionados pelos mesmos nomes de sempre, Bolsonaro puxou para sua pessoa o sentimento de mudança em um país que ainda sofre com questões de quinhentos anos atrás. Por mais hipócrita que seja essa sua postura – afinal de contas, ele passou quase trinta anos como deputado e utilizou do sobrenome para eleger os filhos a outros cargos políticos -, ela é mais atraente para boa parcela da população, e não apenas por ser simples, mas também por conter um fundo de autenticidade. Quando o presidente fala que o “vírus é igual chuva, vai molhar 70% de vocês”(3), ele diz uma verdade muito bem conhecida por todos: a pandemia jamais seria controlada enquanto sair de casa fosse uma necessidade para a maioria das pessoas. A letalidade do novo coronavírus apenas seria reduzida se aluguéis e contas de água e energia precisariam fossem canceladas; se alimentos e itens de higiene básica fossem distribuídos em escala massiva; se habitação adequada fosse oferecida para aqueles moram em casas apertadas, sem saneamento básico e os que vivem nas ruas; se a circulação de veículos de todos os tipo fechasse para evitar o contágio do vírus, etc. Em outras palavras, o único jeito de evitar que "a chuva molhasse 70%" de nós, seria congelando o capitalismo. Essa decisão jamais poderiam ser tomada por Bolsonaro tanto pelo seu desinteresse quanto por ela pressupor o rompimento com o movimento autofágico e imparável do capital. A submissão das pessoas aos princípios da valorização do valor fazem com que, para manterem a reprodução de suas vidas, elas passem a vida inteira vendendo sua força de trabalho para pagar por moradia, alimentos, higiene e todos os outros tipos de itens essenciais para uma vida digna.

Nesse contexto, Bolsonaro não buscou conter a crise aprofundada pela pandemia, mas sim acelerar ela por meio de incentivos aos brasileiros para impedirem quaisquer medidas que atentassem contra suas liberdades. Dando voz às vontades de milhões de brasileiros de continuarem trabalhando – seja pelas necessidades materiais de uns ou pelo negacionismo de outros -, Bolsonaro conduziu a crise com a mesma lógica sacrificial incentivada pelos governos progressistas de forma não-intencional, porém, sem nenhuma máscara de civilidade. No entanto, as exigências de se conter a aceleração desenfreada do derretimento da sociedade por parte de Bolsonaro vieram de outros setores além do progressismo: a burguesia brasileira e seus representantes políticos, midiáticos e intelectuais. Percebendo o prolongamento da pandemia como uma ameaça para o bom funcionamento dos negócios, esses atores entraram em cena para impedir que a aceleração bolsonarista implodisse o Brasil, sendo o movimento mais ousado dos mesmos a instalação da CPI da pandemia no senado.

Os autores recordam este momento para mostrar que, assim como a contenção do progressismo é incapaz de conter a aceleração das tendências do capitalismo contemporâneo, a aceleração bolsonarista precisa ser controlada para não destruir completamente os fundamentos do modo de produção de mercadorias. Eles concluem argumentando que a alternância entre o progressismo e os seus opostos no controle do Estado não seria uma troca entre projetos de países distintos, e nem uma disputa moral e dualista entre progresso e atraso, mas sim a dinâmica necessária para governar uma sociedade que se torna mais ingovernável a cada dia. Portanto, as tentativas dos governos progressistas de conter a dessocialização autofágica que orienta o capitalismo de hoje, e a aceleração bolsonarista dessa mesma dessocialização seriam duas faces diferentes da mesma moeda. Nas palavras dos autores “assim como a contenção implica aceleração, a aceleração demanda contenção, e isso pode ser observado na política brasileira durante o mandato de Bolsonaro”(p.110). Ambos seriam duas formas distintas, porém mutuamente necessárias, de gerir uma sociedade que se autodestrói.



Notas:








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