A partir do século XVIII, com as transformações decorrentes da Revolução Industrial
e da evolução do capitalismo, o esporte ganhou novos traços e a interação das sociedades com
ele foram similarmente transmutadas. As relações capitalistas passaram a permear as grandes
atividades esportivas tão fortemente que hoje em dia não podem mais ser dissociadas. Nesse
sentido, cabe também entender que a política é inerente ao esporte e que por mais que, muitas
vezes, as grandes organizações esportivas internacionais tentem desencorajar essa associação,
ela é impossível de ser desfeita.
Dessa forma, constata-se que, de maneira geral, o esporte tem um importante papel
nos dias atuais e, se tratando de sua relação com o capitalismo e o sistema internacional, a
realização dos megaeventos esportivos merece o devido destaque dentro do tema. Assim,
quando se fala em esporte atualmente, as imagens gerais que se podem ter são dos grandes
clubes das mais variadas modalidades esportivas, das seleções nacionais, dos órgãos internacionais que regulam os megaeventos esportivos, da enorme quantidade de dinheiro
envolvida nesse mercado e das controvérsias que cercam o assunto, principalmente no que diz
respeito a direitos humanos e condutas governamentais.
Em 2022, esportes e direitos humanos são assuntos que se encontram em evidência,
em especial por ser o ano de realização dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim e da Copa
do Mundo no Qatar. Ambos os eventos mobilizam uma enorme quantidade de dinheiro e
planejamento, além de atraírem atenção midiática de todo o mundo, o que também acaba
jogando luz sobre questões sociais mais profundas e a relação que elas têm com esses
megaeventos.
As Olimpíadas e a Copa se tornam cada vez mais ligadas aos grandes conglomerados
empresariais e, à medida que se transformaram em eventos globais, passaram a abranger
também Estados autoritários. A partir disso, esses países começaram a utilizar esses
megaeventos esportivos como ferramentas para promoverem seus próprios interesses. Os
regimes democráticos fazem o mesmo, no entanto, quando esse mecanismo é utilizado por
Estados autoritários, algumas questões pertinentes podem ser apontadas.
Entre elas, o sportswashing que, por definição, consiste na utilização do esporte por
governos autoritários, empresas ou indivíduos para mascarar problemas e melhorar a imagem
internacional. Na prática, tenta-se usar o esporte como uma “maquiagem” para camuflar a
reputação do país ou indivíduo em outros aspectos. A realização de megaeventos como a
Copa e as Olimpíadas pode, muitas vezes, ser usada como ferramenta de sportswashing.
Nesse sentido, muitos países autoritários usam esse instrumento para tentar encobrir violações
de direitos humanos dentro do Estado e não perderem prestígio internacional por isso. Assim,
o sporstwashing pode agir como uma ferramenta de poder.
No entanto, nos últimos anos os movimentos sociais de proteção dos direitos humanos
têm sido extremamente ativos na promoção de uma agenda social que os resguarde. Isso
significa que existe uma forte mobilização para questionar os governos autoritários que
sediam esses megaeventos, além dos principais órgãos esportivos internacionais, como a
Federação Internacional de Futebol (FIFA) e o Comitê Olímpico Internacional (COI). As
principais críticas residem não só nos governos, mas também no papel que essas organizações
desempenham nesse tipo de evento e o porquê são tão tolerantes com regimes autoritários.
Essa discussão fica ainda mais evidente quando se analisam os Jogos Olímpicos de
Inverno e a Copa do Mundo de 2022, sediados na China e no Qatar, respectivamente. Ambos
são Estados autoritários e possuem polêmicas em relação a violações de direitos humanos.
Porém, não deixaram de ser considerados como possibilidades para sediar esses megaeventos.
No caso chinês, a situação gerou uma tensão internacional ecoada por questões antigas
envolvendo a China e violações dos direitos humanos. Assim, faz-se necessário entender
como isso aconteceu. Os Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim (Beijing), que ocorreram de
4 a 20 de fevereiro, causaram polêmicas. Desde o final de 2021 já se viam notícias sobre o
chamado “boicote diplomático” aos Jogos, promovido, especialmente, pelos EUA e adotado
também por outros países, como Canadá, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Bélgica e
Lituânia. Tal boicote consistiu na decisão de não enviar nenhuma representação
governamental para Pequim, apesar da garantida participação dos atletas nos jogos.
A argumentação estadunidense para engajar-se na promoção desse ato simbólico foi
sustentada nas alegações de violação dos direitos humanos na China, em especial na região de
Xinjiang. Esse ponto se provou a partir da fala de Jen Psaki, porta-voz da Casa Branca: “O
governo Biden não enviará nenhuma representação diplomática ou oficial para os Jogos
Olímpicos e Paraolímpicos de Inverno de Pequim 2022, devido ao genocídio em curso na
China e aos crimes contra a humanidade em Xinjiang” (CNN Brasil, 2021). Além disso,
acrescentou: “A representação diplomática ou oficial dos EUA trataria esses jogos como
normais em face dos flagrantes abusos dos direitos humanos e atrocidades da China em
Xinjiang, e simplesmente não podemos fazer isso” (CNN Brasil, 2021).
É sabido que, há tempos, grupos de ativistas pelos direitos humanos criticam o Comitê
Olímpico Internacional (COI) por conceder, pela segunda vez, a sede dos Jogos à China,
mesmo que as condições dos direitos humanos não tenham melhorado no país desde a
Olimpíada de Verão de 2008, também ocorrida em Pequim. Nesse contexto, houveram países
que se mostraram abertamente contrários, como a Rússia e a Coréia do Sul. O primeiro, vale
lembrar, mesmo com todas as sanções que sofre desde 2014 com o início do conflito com a
Ucrânia, sediou tanto os Jogos Olímpicos de Inverno (2014) como uma Copa do Mundo
(2018), sendo também mais um exemplo de país autoritário que utiliza o sportswashing como
ferramenta de poder.
No caso da Copa do Mundo de 2022, sediada no Qatar, as críticas dos movimentos
sociais apontam para as condições de trabalho nas obras realizadas para receber o megaevento
no país. Por ser um Estado com uma população pequena, grande parte dos trabalhadores
encarregados das obras são estrangeiros provenientes, em geral, do sul da Ásia. Eles possuem
condições de trabalho e moradia precárias e, devido a situação não regularizada dessa
população e a grande possibilidade de deportação, não têm chance de se reunir em sindicatos
para buscarem melhores condições de trabalho.
Dessa forma, esses trabalhadores ficam vulneráveis às imposições do governo. Essa conjuntura chamou atenção dos movimentos sociais e organizações internacionais que atuam em prol dos direitos humanos, como a Anistia Internacional.
Além disso, recentes polêmicas sobre as leis anti-LGBTQIA+ no país têm
tomado cada vez mais as mídias internacionais. A contradição do posicionamento da FIFA,
que diz ser fortemente contra a homofobia, com a escolha do Qatar para sediar a Copa do
Mundo não passou despercebida por torcedores e atletas.
Contudo, mesmos com todas essas questões postas, sediar esses megaeventos
esportivos traz uma série de vantagens aos países anfitriões pois, mesmo com todas as críticas
que podem surgir, esses eventos possuem prestígio internacional, sobretudo por mexerem com
sentimentos, noções de pertencimento e nacionalismo.
A verdade é que, na prática, quando os jogos começam e as pessoas vestem as camisas de suas respectivas seleções, pouca atenção sobra para essas questões sociais e estruturais profundas, mesmo que estejam relacionadas à violações dos direitos humanos. Essa mudança pode ser percebida quando se observam os noticiários nos períodos anteriores e posteriores ao início dos jogos.
Antes das habituais cerimônias de abertura, muito se vê nas mídias sobre as controvérsias e problemas decorrentes da realização dos megaeventos. Em contrapartida, quando os jogos têm início, geralmente essas questões são deixadas de lado e substituídas pelo frenesi em relação às atividades esportivas.
Ao olhar para os países em desenvolvimento, os impactos sociais provocados pela
realização dos megaeventos esportivos podem ser ainda mais brutais. Eles podem desencadear
ou intensificar questões sócio-econômicas, atenuar ou estimular a segregação social, melhorar
ou deteriorar a mobilidade urbana, entre outros. Isso acontece porque esses eventos se
tornaram algo tão grande que demandam a construção ou ampliação de infraestrutura. Dessa
forma, exigem investimentos significativos, sobretudo quando se trata de países do Sul
Global, em que essas estruturas, em geral, são pouco desenvolvidas ou não estão de acordo
com os padrões internacionais exigidos.
Quando se discute esse tema, alguns questionamentos devem ser postos, visto que
grande parte deles possui ligação direta com as prioridades estabelecidas pelos respectivos
governos anfitriões em suas políticas públicas: onde ficará localizada a infraestrutura
construída? Que partes da cidade serão beneficiadas? Qual parcela da população será
favorecida pelas novas estruturas? O governo pretende atenuar ou intensificar a segregação
social nas suas cidades? As políticas públicas permitirão que toda a população se beneficie
dos investimentos feitos pelo Estado?
Em síntese, todas essas questões devem ser sopesadas pois, dependendo do caminho
adotado pelo governo anfitrião, as consequências de sediar megaeventos esportivos podem ser
boas ou catastróficas para parte da população local. É por isso que, em períodos em que esses
eventos ocorrem, especialmente em países em desenvolvimento, muitos temas sociais vêm à
tona. Geralmente são épocas em que passa-se a questionar os gastos públicos que, na
perspectiva de muitos, poderiam estar sendo direcionados para resolver problemas estruturais
nas áreas de saúde e educação, temas caros aos direitos humanos.
Outro aspecto importante é que esses megaeventos normalmente possuem altos custos,
o que impede a frequência da população mais vulnerável economicamente a eles. Portanto,
quem acaba se beneficiando desse tipo de atividade é uma restrita elite que, dados os devidos
recortes raciais no caso brasileiro por exemplo, é composta por pessoas brancas. Essa é uma
das formas de aumentar a segregação social e impedir o acesso de grupos minoritários a esses
espaços reconhecidos internacionalmente. Na prática, geralmente as populações em
vulnerabilidade econômica são as que mais sofrem com os efeitos negativos de sediar os
megaeventos esportivos, mesmo que não sejam elas que em maioria lotem os estádios e
arenas durante os jogos.
O que acontece é que, muitas vezes, os megaeventos esportivos servem apenas como
justificativas para que governos anfitriões realizem políticas públicas de segregação social já
antes intencionadas, como remoções de comunidades carentes de suas regiões. Contudo,
sediar um megaevento esportivo não é sinônimo de segregação social. O que a determina é a
postura dos governos em relação às suas prioridades. Nos Jogos Olímpicos de 1992, ocorridos
em Barcelona, por exemplo, o planejamento de infraestrutura que o governo fez permitiu que
a cidade deixasse de ser marginalizada e se tornasse uma cidade global prestigiada.
Ademais, quando se tratam das controvérsias dos megaeventos esportivos a respeito
dos direitos humanos, os principais órgãos que regulam suas atividades não passam
despercebidos. As fortes críticas ao COI, já anteriormente citadas, também podem ser
abrangidas até a FIFA. Ambos os órgãos possuem normas que reiteradamente restringem
protestos políticos e a liberdade de expressão em seus eventos. Todavia, essas restrições às
liberdades civis e políticas durante os jogos estão não só diretamente em contradição com a
Carta Internacional dos Direitos Humanos mas, muitas vezes, com as próprias constituições e
as leis democráticas dos países anfitriões.
Entretanto, mesmo que haja um esforço contínuo dos órgãos administradores de
afastar o esporte da política, as manifestações nunca deixam de existir, pois ambos não podem
ser dissociados. Empiricamente, observa-se que não se pode proibir totalmente a população de
se expressar, pois as massas não podem ser milimetricamente controladas. Conclui-se, dessa
maneira, que as lutas políticas são inerentes aos seres humanos.
Nesse sentido, os espaços que abrigam os megaeventos esportivos acabam se tornando palcos para contestação política, mesmo que a intenção dos organizadores não seja criar um ambiente favorável a isso. Em suma, quando se analisa o tema do esporte sob o recorte dos direitos humanos, os megaeventos esportivos podem ser destacados como intensificadores de uma série de questões sociais e questões caras às Relações Internacionais.
Têm-se, portanto, que a relação entre esporte e direitos humanos é extremamente íntima e que o comportamento dos Estados perante essa associação é determinante para o impacto da questão nas sociedades, seja ele positivo ou negativo.