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Democracia, equidade e a aposta na diversidade de corpos na política

Poucos dias após tomar posse, o primeiro ministro do Canadá, Justin Trudeau, foi questionado em uma coletiva de imprensa sobre por quê o seu gabinete teria 50% de mulheres em sua composição. “Porque é 2015”, respondeu. A igualdade de gênero defendida pelo líder liberal canadense é uma tendência política persistente, cujas premissas e práticas se renovam a cada novo ciclo eleitoral.

Se uma maior participação feminina na política ganhou contornos de legitimidade junto ao eleitorado, essa adesão ainda é parcial no âmbito institucional. Há muitos obstáculos internos para os quadros políticos femininos nos partidos políticos, estejam eles à direita ou à esquerda, e essas dificuldades são ainda maiores a depender de fatores como raça/cor, identidade de gênero, território e idade. Mesmo nas casas legislativas - onde o percentual de mulheres ainda é baixo, comparado ao que o mesmo grupo representa em termos demográficos - existe uma enorme resistência à criação de políticas efetivas de promoção de mulheres na política, com mudanças na legislação e orçamento dedicado.

Qualificar o debate sobre a participação de mulheres na política passa, necessariamente, pela inclusão das variáveis socioeconômicas supracitadas nas análises sobre a escolha de candidatas para cargos eletivos. Isto porque a apropriação da pauta e dos parcos recursos destinados às mulheres se provou um fenômeno generalizado. Da extrema direita francesa com Marine Le Pen, passando por Keiko Fujimori, no Peru, até o escândalo das candidaturas laranjas de onze mulheres pelo PSL (Partido Social Liberal), no Rio de Janeiro, prevalece a compreensão de que a representatividade feminina na política não pode ser estéril.

Isto é, para garantir políticas públicas capazes de transformar concretamente a realidade (não apenas de mulheres, mas do conjunto da sociedade), é preciso eleger candidatas comprometidas com o aprofundamento da democracia. E, mesmo quando essas candidaturas femininas não se provarem viáveis, faz-se necessária a defesa de um projeto político que dê conta das demandas de mulheres e de suas comunidades pelo acesso aos seus direitos.

Nesse sentido, o exemplo da corrida eleitoral que culminou na eleição de Gabriel Boric, no Chile, pode indicar um caminho interessante. Mesmo sendo um homem branco de classe média, Boric foi capaz de dialogar com os movimentos de mulheres do Chile sobre agendas fundamentais como o direito ao aborto. Como resultado, Boric obteve mais de 60% dos votos femininos, ao passo que seu adversário da ultra direita, José Antonio, Kast teve cerca de 30%. Também foram as mulheres as grandes responsáveis pela mobilização de suas comunidades para irem votar. Muitos analistas consideram que este foi um setor da sociedade decisivo para explicar a eleição presidencial.

No Brasil, tivemos um movimento semelhante em 2018: a maior parte do eleitorado feminino não votou no atual presidente, cuja agenda política não contempla as demandas históricas desse grupo social. No mesmo ano, houve também um aumento significativo na participação de mulheres negras candidatas à deputação nos estados e para a Câmara Federal, muito motivadas pelo feminicídio político da vereadora carioca Marielle Franco.

Sobre este fenômeno, é interessante perceber como a agenda defendida pela vereadora foi incorporada não apenas por mulheres do mesmo partido, mas também por um grupo ampliado de pessoas negras que decidiram, depois de março de 2018, participar da política institucional. Houve uma compreensão do que são os Direitos Humanos, fato que permitiu a identificação de variadas lideranças com esse projeto de sociedade do qual Marielle foi defensora.

Trata-se de uma agenda internacional de resistência ao avanço do autoritarismo, da militarização e da despolitização. Francia Márquez Mina, pré-candidata à presidência da Colômbia, é um quadro político expoente nesse campo. Vencedora do Prêmio Goldman (uma espécie de Nobel do Meio Ambiente), Marquez é uma referência na América Latina quando o tema é a recuperação dos espaços cívicos. Suas falas públicas buscam motivar as pessoas a votar pela crença nesse projeto político emancipatório (sobretudo para mulheres) ao contrário do que se faz no campo adversário, com apelos frequentes à morte e à escassez.

As eleições no Chile, na Colômbia e no Brasil guardam muitas similaridades apesar das características particulares de cada país. A principal delas talvez seja a oportunidade de redirecionar a política institucional, afirmando com veemência a presença nos espaços de poder e decisão daqueles corpos historicamente apartados do poder.

Erica Hilton foi a vereadora mais votada de todo o Brasil nas primeiras eleições municipais após a eclosão bolsonarista. Os mais de 50 mil votos que a parlamentar recebeu em 2020 têm muitos significados, entre eles a confirmação de que a democracia que queremos tem necessariamente de incluir pessoas trans. Sua presença robusta na política institucional será a garantia da mudança das condições que permitem que hoje o Brasil seja o país onde mais travestis e transexuais são assassinados no mundo.

Segundo dados da ANTRA, foram 30 pessoas trans eleitas em 2020, um número quatro vezes maior do que no pleito anterior. Esses mandatos trazem pautas e práticas inovadoras e sofisticadas como a ampliação do conceito de cidadania - abrindo mão de definições totalizantes em favor do reconhecimento das identidades e do respeito às diversidades - e os mandatos coletivos ou compartilhados, reafirmando seu compromisso com a coletividade em um exercício de poder não-individualizante.

Em resumo, parece acertado inferir que a resposta necessária aos avanços antidemocráticos virá de projetos políticos inspirados nas experiências relatadas acima. Sobretudo quando há novas ferramentas institucionais de promoção da equidade e da diversidade na política, como a antecipação dos recursos do Fundo Eleitoral para negros e mulheres, no caso brasileiro. Temos, em 2022, mais uma oportunidade de defender a democracia, os direitos fundamentais e o bem-viver, fortalecendo os mandatos progressistas e as lideranças coletivas que almejam uma cadeira no parlamento.



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